terça-feira, 8 de abril de 2008

Depoimento de Allan Sales

Entre as experiências mais gratificantes de minha vida, sem dúvida, foram as vivências com o teatro. Em 1981, na Vila do IPSEP, havia um grupo chamado Carrapicho. Era um grupo amador e formado por pessoas humildes da comunidade da Vila Maria Lúcia em sua maioria, estavam montando um texto de Jairo Lima: A Chegada de Lampião no Inferno. Um amigo meu, Domingos Dabicco, violonista dos bons, me convidou para uma reunião na qual eu seria convidado para compor uma trilha musical para a peça de teatro. No dia e hora combinados, lá estava eu no Centro Social Urbano da vila diante de Carlos Silva o diretor e mais outras pessoas do elenco. Fizeram uma leitura do texto pra mim que ouvi com grande prazer aquela peça, toda escrita em literatura de cordel e compilada em forma de teatro por Jairo Lima.
Levei pra casa uma cópia do texto e me pus a musicar os versos do texto de acordo com proposta de ser uma coisa bem nordestina. Conseguimos montar a peça que era carente de técnica cênica, dada a precariedade da formação do diretor( que não a tinha), assim como a ausência de preparação de técnicas de empostação e projeção de voz, expressão corporal por parte de todos do elenco, do qual eu mesmo fiz parte fazendo o papel de Padre Cícero no final da peça substituindo um ator que saiu do elenco. Uma verdadeira patuscada, a peça era um pastelão do começo ao fim, mesmo assim, nós tivemos nosso ápice ao participar do TEBO (Festival de Teatro de Bolso, promovido pela Prefeitura da Cidade do Recife). No júri, o professor Joacir de Castro que depois me fez o convite para montar “A Chegada Lampião no Inferno” sob sua direção e com um elenco profissional.
Neste elenco: Ivonete Melo, atriz e bailarina, que fizera parte da festejada trupe “Vivencial Diversiones” , que causara o maior rebuliço com sua irreverência nos anos 70. Buarque de Aquino, ator e bailarino que canta divinamente era outro bom ator que junto com o poeta e ator Valdir Martins e Everton Sóstenes, além do Joacir que era o nosso Lampião. Todos maravilhosos, talentosos e com conhecimento de artes cênicas, eu no meio desse povo, com meus 22 anos e atordoado com o enorme volume de informações que me chegavam às mãos naquele momento. Na peça, o diretor colocou nas entrelinhas uma série de provocações estéticas, morais e políticas, uma leitura brecthiana da peça de Jairo Lima, com pitadas do Teatro do Oprimido de Augusto Boal. Através desse povo conheci Brecht, Stanilasvisky, Augusto Boal, Paulo Freire, Josué de Castro e Darcy Ribeiro, leituras que fizemos para embasar nossa dramaturgia engajada.
Vendemos um projeto: Teatro Aplicado à Educação. Quem assumiu foi a Secretaria de Educação e Cultura de Pernambuco, que apesar de estar regida por um governo da direita, aceitou nosso trabalho com todo seu conteúdo ideológico que não afinava com o perfil conservador dos poderosos de plantão naquele ano de 1982. A idéia era encenar a peça primeiramente nas escolas, depois nas comunidades dos alunos, sempre seguida de um debate acerca do conteúdo das idéias que eram lançadas no espetáculo. A cidade escolhida para estrear foi Gravatá, ao redor do CERU (Centro de Educação Rural) que comandava toda uma região no Agreste com dezenas de escolas nas comunidades rurais e periferias da cidade. Fomos bem recepcionados pela diretora da escola assim como seu vice, estreamos na escola com grande sucesso e passamos a fazer os 32 espetáculos previstos no projeto.
Era ano de eleição, a diretora, casada com um cacique político de um distrito chamado Russinha, o vice-diretor da escola eram correligionários do extinto PDS(hoje Democratas). Entusiastas do regime militar, conservadores, fisiológicos ao extremo. Naqueles tempos tinha o famigerado voto vinculado, o vice-diretor da escola era candidato a vereador na cidade, viu naquele espetáculo uma forma de vincular sua imagem à cultura. Estava sempre ao nosso lado, ele pagava do seu bolso pileques e banquetes homéricos por todo canto de Gravatá em que estivemos.
Num belo dia fomos nos apresentar na terra da diretora: Russinha. No caminho ela nos disse que a partir de certo ponto da estrada começavam as terras de sua família, andamos mais de meia hora vendo essas terras sem nada plantado até chegar em Russinha, aonde nos apresentaríamos na porta da igreja local. O vice-diretor pediu pra gente dizer que aquela peça encenada na cidade era um patrocínio do marido da diretora que era uma espécie de “Sinhozinho Malta” local. Coronel nordestino típico que queria lucrar em cima de uma coisa paga com dinheiro público. Nos recusamos a fazer propaganda desse pústula e afirmamos que era coisa do Governo do Estado de Pernambuco para indignação do coronelzinho de merda, sua esposa e seu pau mandado vice-diretor. Na volta o tempo fechou dentro da kombi que nos trazia de volta com o vice vociferando contra nós, ameaçando em nos tirar de cena, que era nossa obrigação exaltar nossos “benfeitores” naquele projeto.
A coordenação da secretaria passou uma reprimenda no povo do CERU de Gravatá que tentou nos usar em prol de objetivos eleitoreiros, razão pela qual passamos comer merenda escolar no lugar dos banquetes pagos pela diretora e pelo seu vice, que de quebra, mandaram tirar a roupa de cama e os ventiladores do alojamento destinado ao nosso grupo que era obrigado a ficar a semana inteira na cidade para executar as atividades de arte-educação previstas no projeto.
Trabalhei com esse povo até 1985, quando fui me aventurar em outras empreitadas cênicas com o GRUPO DE POESIA FALADA DO RECIFE que fazia teatro em cima da poesia em língua portuguesa com o qual trabalhei até 1988. Em 1989, o GRUPO DRAMART montou O MENINO DO DEDO VERDE de Maurice Druon, eu compus ao lado de André Filho as 22 canções da trilha musical que executávamos ao vivo com violão, flauta transversal e percussão. A partir daí, fui conhecendo as pessoas ligadas ao teatro pernambucano. Foram 27 intervenções minhas em peças de teatro como músico, diretor musical e autor de trilhas musicais. Foram ao todo 15 trilhas musicais que me deram ao todo sete premiações em festivais de teatro, duas delas de caráter nacional. Entre essas peças, compus a trilha original de A HISTÓRIA DO TRÊS PORQUINHOS, dirigida por Cleusson Vieira e produzida por Pedro Portugal, que está em cartaz de 1992 até hoje (atualmente no HORTO DE DOIS IRMÃOS nos domingos) sendo a peça infantil que mais tempo está em cartaz em Pernambuco.
Em 1994, passei em Engenharia Civil na POLI, tinha dois bebês e mulher linda pra cuidar, razão pela qual me vi obrigado a deixar de lado essas coisas de teatro que não davam o retorno necessário para fazer frente às despesas de um homem casado e pai de dois meninos. Obrigações paternas e acadêmicas me afastaram do teatro pernambucano no qual aprendi todas as melhores coisas de palco que hoje fazem parte do conhecimento de vida que agregou grandes valores estéticos e de profissionalismo na minha trajetória nos palcos da vida. Valeu companheiros e companheiras!

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